domingo, 21 de março de 2010

INEVITÁVEL ABISMO

(ou Poema de Amor em Pedaços)


Não se deve olhar quando olhar significaria
debruçar-se sobre um espelho rachado.
Que pode ferir com seus cacos deformantes.
(Caio Fernando Abreu)


                                                                             BANHAVA-SE EM LAGOS para ver de perto a restrita liberdade que os peixes pareciam se conformar. Em águas turvas eles eram apenas peixes que buscavam a luz, sempre cegos e ignorantes. Sempre estiveram num abismo sem saída. O Rapaz mergulhava e, quem sabe, ainda faz o mesmo por não entender o quanto é difícil querer sair dum abismo.
O rapaz olhava seu reflexo, meditava a passagem do tempo como quem observa um rosto sem cortes, mas com cicatrizes ainda percebidas pelo olhar alheio. Quis dizer, me senti usado, assim, como usei tantos em outros tempos. Mas sei que tenho me tornado outro, sem desejos a muitos, sem desesperos que saltam aos olhos de quem vê.
Todas as manhãs ao acordar de sonhos com águas que acreditava serem límpidas, Ele recitava o mesmo: Por que um suspiro não é um grito que possa ser ouvido por ti, nos instantes que desejo um abraço teu... Tentativa já desgastada de pedir ao universo alguma espécie de consolo: Por que sempre nesses instantes vivo sonhos nebulosos, vozes ásperas, seduzindo e destruindo a continuidade dos fatos. Acreditava exclusivamente no primeiro instante, no breve instante que desejava o mesmo abraço que o destruíra um dia.
Quando se conheceram, o Outro saíra cavalgando de um riacho de águas muito sujas, olhava-se em espelhos d’água sem medo algum. A voz do Outro refletia alguns resquícios desses monarcas das coxilhas. O rapaz sempre desejou um mito para organizar o seu caos. No entanto, com o tempo, pode verificar que tudo era só um sonho. O Outro vinha, assim, como um Ares invencível, para dominá-lo e levá-lo aos escombros de uma terra que foi prometida e, que de fato, era apenas um Eros de violentas faces. Ele pedia, escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então.
O rapaz, com sua inútil consciência de mundo, ainda dialogava: Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto, além do ponto passamos e não aumentei nem diminuí um só conto dos pontos em questão. Continuo sentindo o mesmo. Num piscar de olhos podemos encontrar o que com os olhos se vê e nem sempre se pode entender. Isso é só um pedido, por favor, sejamos docemente compreensivos, docemente... E se é o bastante, adoraria uma só resposta, se é que ela existe.
Para tentar voltar ao equilíbrio anterior, perseguia a felicidade de rostos estranhos, esses que evitam olhar-se em espelhos, motivados por um profundo desespero de jamais querer se encontrar. Ele se divertia com a felicidade de outrem: Observem essas árvores urbanas, são tão felizes. Isso é porque não há consciência da própria dor...
Com isso, abriam-se pensamentos que o ancoravam no seu inevitável abismo cavado com as próprias mãos. Ele fraquejava ao perceber em si-mesmo o mal que representava amar o Outro: Por que minhas dores não são causadas por ti, mas por mim, justamente por não entender que os nossos instantes não foram como percorrer campos com flores perenes...
Mesmo assim continuava desejando. Queria que as noites fossem novamente quentes para poder usar somente o Outro de lençol. E quando se encontravam nos sonhos, o Outro sempre o via diante do abismo, próximo a despencar. Ele dizia: deixe-me cair, deixe-me sentir o vento, acariciador de faces, manipulador de artes, destruidor... até que me mate.
                                                                                     Confiei no que o destino pregava, me fiz de contente aproveitando prazeres que induziam a sonhos inatingíveis. E vi, por fim, que as sombras são as melhores companhias, porque o que resta é esse interminável rito de nós dois: Teu rosto: máscara observada no fundo de um abismo... Meu vulto: marcas na íris que vertem um mar de sangue... Tua ausência: liberdade que me singulariza para deixar-me vazio... Minha falta: assombroso rito que te fragmenta para tornar-te intocável... Tua voz: ficção inverossímil, inoportuna, o mito do Caos em poucas palavras... Meu discurso: preciso que termines dentro de mim.

Danilo Machado

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